O CONTO DO MORTO, de Willard E. Hawkins

[publicado originalmente em Weird Tales v1, n1, março de 1929.


A curiosa narrativa que se segue foi encontrada entre os papéis do falecido Dr. John Pedric, investigador psíquico e autor de obras ocultistas. Ela apresenta evidências de ter sido recebida por meio de escrita automática, assim como várias de suas publicações. Infelizmente, não há registros que confirmem tal suposição, e nenhum dos médiuns ou assistentes por empregados em seus trabalhos de pesquisa admite ter esse conhecimento. Possivelmente - pois o Doutor tinha a reputação de possuir poderes psíquicos - ele pode tê-las recebido desse modo. De qualquer forma, a falta de dados inutiliza o texto como documento para a Society for Psychical Research. Ele foi publicado por pelo interesse ou significado intrínseco que possa ter. Com referência aos nomes mencionados, podemos acrescentar que não são confirmados pelos registros do Departamento de Guerra. Pode-se sustentar, entretanto, que nomes fictícios foram inseridos de propósito, seja pelo Doutor ou pela entidade comunicante.

ELES me chamavam - quando eu andava na terra em um corpo de matéria densa - de Richard Devaney. Embora minha história tenha pouco a ver com a guerra, fui morto na segunda batalha do Marne, em 24 de julho de 1918.

Muitas vezes, como fazem os homens que sentem a iminência da morte nas trincheiras todos os dias e em todos os momentos, imaginei esse evento em minha mente e me perguntei como seria. Essencialmente, eu me inclinara para a crença na extinção total. Que, quando o corpo vigoroso e cheio de sangue que eu possuía fosse desprovido de suas faculdades, eu, como uma criatura dele separada, fosse continuar a viver, estava além da credibilidade. A força da vida na máquina humana, pensei, era como o jorro de gasolina no motor de um carro. Corte esse fluxo e o motor fica inerte, morto, enquanto o fluido que lhe dá força não é nada em si mesmo.

Assim, confesso, foi uma surpresa descobrir que eu estava morto e, mesmo assim, não tinha morrido.

Não fiz a descoberta de imediato. Senti uma concussão ofuscante, um momento de escuridão, uma sensação de queda — queda — em um abismo profundo. Depois de um tempo indefinido, vi-me parado, atordoado, na encosta da colina, em direção ao cume da qual estávamos atacando o inimigo. Veio-me o pensamento de que devia ter perdido a consciência por um momento. No entanto, sentia-me estranhamente livre do desconforto físico.

O que estava fazendo quando aquele momento de escuridão apagou tudo? Fui dominado por um propósito, um desejo ardente——

Como um relâmpago, a lembrança explodiu em mim e, com ela, uma chama de ódio - não contra os artilheiros alemães, escondidos na floresta acima de nós, mas contra o inimigo particular que eu estava prestes a matar.

Era a oportunidade pela qual eu esperara dias e noites intermináveis. Na formação aberta, ele se manteve alguns passos à minha frente. Enquanto corríamos para a frente, caindo de barriga e atirando em seguida, eu vi que tinha uma chance. Ninguém suspeitaria, com as dezenas de homens que caíam a todo momento sob o fogo impiedoso vindo das árvores, que a bala que acabou com a carreira de Louis Winston veio do rifle de um camarada.

Eu havia mirado duas vezes, mas não atirei - não por indecisão, mas para, apesar do calor da ação, eu conseguir atingir um ponto vital. Quando levantei meu rifle pela terceira vez, o inimigo ofereceu um alvo.

Deus! como eu o odiei. Com os dedos ansiosos para enfiar o aço em seu coração, forcei-me a manter a calma - segurar o fogo por aquele fragmento de segundo que garantiria uma pontaria cuidadosa.

Então, quando meu dedo pressionou mais o gatilho, veio o flash ofuscante - o momento de escuridão.

II.

Eu havia permanecido inconsciente por mais tempo do que imaginava.

Exceto por algumas figuras que jaziam imóveis ou se contorciam em agonia no campo, o regimento havia passado, para se perder nas árvores no topo da colina. Um pouco desapontado, percebi que Louis estava entre eles.

Involuntariamente, comecei a avançar, ainda impulsionado pelo impulso de ódio ardente, quando ouvi chamarem meu nome.

Virei-me, surpreso, e vi uma figura de capacete agachada ao lado de algo encolhido na grama alta. Não foi preciso olhar duas vezes para saber que aquela coisa amontoada era o corpo de um soldado. Eu só tinha olhos para o homem que estava curvado sobre ele. O destino fora gentil comigo. Era Louis.

Aparentemente, estava tão preocupado que não me notara. Com frieza, levantei meu rifle e disparei.

O resultado foi surpreendente. Louis não caiu de cabeça nem olhou para a direção do tiro. Vagamente, questionei-me se havia disparado.

Frustrado, senti o desejo de matar crescendo em mim com fúria redobrada. Com o rifle erguido, corri em sua direção. Bati a coronha contra sua cabeça, num golpe terrível.

A coronha atravessou-lhe! Louis permaneceu impassível.

Rosnando, sem entender, joguei longe a arma inútil e joguei-me sobre ele com as mãos nuas - com dedos que se esforçavam para rasgar, bater, estrangular.

Em vez de encontrar carne e osso sólidos, eles também o atravessaram.

Era uma miragem? Um sonho? Eu tinha enlouquecido? Sóbrio - por um momento esquecido de minha fúria - recuei e tentei raciocinar. Louis era apenas uma invenção da imaginação - um fantasma?

Meu olhar caiu sobre a figura ao lado da qual ele soluçava, suplicando com palavras incoerentes.


Tomei um susto, depois olhei mais de perto.

O morto - pois não havia dúvida sobre sua condição, com o ferimento cheio de sangue do estilhaço no lado da cabeça - era eu mesmo!

Aos poucos, a importância do fato penetrou na minha consciência. Então, percebi que era Louis quem tinha me chamado - que, mesmo agora, ele estava chorando sem parar.

A ironia me atingiu quando percebi. Eu estava morto — eu era o fantasma — e pretendia matar Louis!

Olhei minhas mãos, meu uniforme – toquei meu corpo. Aparentemente, eu era tão material quanto antes do estilhaço se enterrar na minha cabeça. No entanto, quando tentei agarrar Louis, minha mão parecia tocar apenas o espaço.

Louis estava vivo, eu estava morto!

A descoberta entorpeceu o que eu sentia por ele, por um tempo. Com uma curiosidade impessoal, vi-o fechar os olhos do morto - o homem que, de uma forma ou outra, tinha sido eu. Vi-o vasculhar os bolsos e tirar uma carta que eu havia escrito naquela manhã, uma carta endereçada a...

Com uma súbita onda de consternação, corri para tirá-la de suas mãos. Ele não poderia ler aquela carta!

Mais uma vez fui lembrado da minha impalpabilidade.

Mas Louis não abriu o envelope, embora não estivesse lacrado. Ele leu o cabeçalho, beijou-o, com soluços rasgando seu corpo, e enfiou a carta dentro da jaqueta cáqui.

“Dick! Amigo!” ele gritou, soluçando. “O melhor amigo que já tive - como posso levar essa notícia para ela?!”

Meus lábios se curvaram. Para Louis, eu era seu amigo, seu camarada. Nenhuma suspeita do ódio que eu tinha - desde que descobri nele um rival para Velma Roth.

Ah, eu tinha sido inteligente! Foi nossa “amizade altruísta” que nos tornou queridos por ela. Um sinal de ciúme, de má índole, e eu teria perdido o paraíso de sua consideração, que aparentemente Louis compartilhava comigo.

Nunca senti segurança de pertencer àquele paraíso. É verdade que eu sempre poderia perguntar-lhe, mas deveria me esforçar para fazê-lo. Ele manteve seu interesse, parecia, sem ao menos tentar. Eles estavam felizes um com o outro, e um no outro.

Nossas relações podem ser expressas comparando-a à água de uma lagoa plácida: Louis era bacia onde ela estava, eu era o vento que soprava. Com meus esforços, eu conseguia agitar sua superfície, com ondas de excitação e prazer - conseguia até mesmo fazer de sua emoção uma tempestade. Ela respondeu ao estímulo do meu humor; mas, em minha ausência, acomodou-se contente no conforto pacífico do amor inabalável de Louis.

Na época, eu senti vagamente - e tenho certeza agora, com uma perspectiva mais ampla em relação às realidades - que Velma intuitivamente reconheceu Louis como seu companheiro, mas temia entregar-se a ele por causa de minha influência sobre sua natureza emotiva.

Quando a Grande Guerra chegou, tenho certeza de todos nós sentimos que ela absolveria Velma da tarefa de escolher entre nós.

Se a agonia que falou das profundezas violetas de seus olhos quando nos despedimos era principalmente por Louis ou por mim, impossível dizer. Eu duvidava que ela conseguisse fazê-lo. Mas, em minha mente estava a determinação de que somente um de nós deveria retornar, Louis seria o escolhido.

Eu não sentia repugnância ao pensar em assassinar o homem em meu caminho? Muito pouca. Meu coração era selvagem - um selvagem a quem o desejo pesava mais do que tudo que pusesse obstrução a seu objeto. Do meu ponto de vista, seria tolo deixar passar a oportunidade.

Por que deveria odiá-lo tanto - mero obstáculo em meu caminho - eu não sabia. Pode ser devido a uma presciência da barreira intangível que seu sangue sempre levantaria entre Velma e eu - ou a um sentido dormente de remorso.

Mas, deixando as especulações de lado, lá estava eu, em um estado de ser que o mundo chama morte, enquanto Louis ainda vivia - estava livre para voltar para casa — para pedir Velma em casamento — para ostentar sua posse de tudo que era mais precioso para mim.


Eu estava enlouquecendo. Devia ficar parado, sem amparo para impedi-lo?

III.

JÁ PENSEI, desde então, como consegui permanecer tanto tempo em contato com o mundo objetivo — por que não me fechei, de uma vez ou logo, das visões e sons do mundo, já que as coisas em formas físicas se fecham para as coisas além. 

A questão parecia ter sido determinada pela minha vontade. Assim como os pesos de chumbo, a inveja de Louis e o anseio apaixonado por Velma seguraram meus pés à esfera de matéria densa.

Vingativo, desesperado, assistia ao lado de Louis. Quando, enfim, ele tirou os olhos do meu corpo e, com lágrimas nos olhos, começou a arrastar uma perna inútil até as trincheiras que abandonáramos, entendi por que não tinha seguido com os outros até o topo da colina. Ele, também, era vítima das metralhadoras alemãs.

Caminhei ao lado dos padioleiros quando eles o pegaram e estavam transportando até o hospital da base. Pelas semanas que se seguiram, flutuei próximo a seu leito, assistindo os médicos fazendo curativos nos tendões lacerados de sua coxa, sem perder os detalhes de sua batalha conta a febre. 

Sobre seu ombro, li a primeira carta que ele escreveu para Velma, na qual relatava minha morte, meditando sobre a glória do meu sacrifício.

"Muito pensei que vocês os dois eram feitos um para o outro", escreveu, "e que, não fora por medo da morte, você teria casado com ele há muito tempo. Ele foi o melhor amigo que alguém poderia ter. Queria eu ter morrido no lugar dele!"

Se eu soubesse, poderia ter seguido esta carta pelos mares — poderia, de fato, tê-la enviado e, por um exercício de vontade, estar ao lado de Velma em um piscar de olhos. Mas minha ignorância das leis do novo plano era total. Todos os meus pensamentos estavam centrados em um problema de caráter totalmente diferente.

Nunca abandonei um tesouro terreno tão com tanta relutância quanto minha esperança de possuir Velma. É claro, a morte não poderia erguer uma barreira tão absoluta. Devia haver uma maneira — alguma brecha na comunicação — alguma chance de que um homem desencarnado pudesse lutar com seu rival corpóreo pelo amor de uma mulher.

Muito, muito lentamente, um plano veio à luz. Tão fraco era seu brilho que não teria confortado alguém em apuros menores, mas para mim parecia oferecer uma possível esperança. Comecei metodicamente, com infinita paciência, a desenvolvê-la em algo tangível, embora tivesse apenas uma vaga ideia de qual seria o resultado.

A primeira sugestão veio quando Louis já havia se recuperado e restavam poucos vestígios de sua febre. Uma tarde, enquanto dormia, o carteiro entregou uma carta à enfermeira ao lado de sua cama. Ela olhou-a e a colocou debaixo do travesseiro.

A carta era de Velma e eu estava ansioso pelo conteúdo. Não sabia então que poderia tê-la lido com facilidade, embora estivesse lacrada. Frenético e impaciente, exclamei:

— Acorde, desperte e leia sua carta!

Com um pulo, ele abriu os olhos. Olhou em volta, com uma expressão confusa.

— Debaixo do travesseiro! — eu fumegava. — Olhe debaixo do travesseiro!

Atordoado, ele pôs a mão debaixo do travesseiro e tirou a carta.

Algumas horas depois, ouvi-o comentar a experiência com a enfermeira.

— Parecia que uma coisa tinha me acordado — disse — eu tive um impulso estranho de tocar debaixo do travesseiro, Era como se eu soubesse que ia encontrar a carta ali.

As circunstâncias pareciam tão extraordinárias para mim quanto para ele. Pode ser coincidência, mas resolvi fazer mais um teste.

Uma série de experimentos me convenceu de que eu poderia, muito levemente, imprimir meus pensamentos e vontade a Louis, especialmente quando ele estivesse cansado ou quase dormindo. De vez em quando, eu conseguia controlar a direção de seus pensamentos, enquanto ele escrevia para Velma.

Em uma ocasião, ele estava descrevendo para ela uma bonita francesinha que visitava o hospital com uma cesta que sempre estava cheia de cigarros e doces.

— Na última vez — ele escreveu — ela trouxe com ela um menino que chamou de....”

Ele pausou, com o lápis para cima, tentando lembrar o nome.

No momento seguinte, olhou para a página e se apavorou. As palavras "Ela o chamou de Maurice foram adicionadas abaixo da linha inconclusa.

— Devo estar ficando maluco — ele murmurou. — Juro que não escrevi isso.

Por trás dele estava eu, esfregando as mãos em triunfo. Foi minha primeira tentativa bem-sucedida de guiar o lápis enquanto seus pensamentos se desviavam para outro lugar.

Em outra ocasião, ele escreveu para Velma:

“Tenho uma sensação estranha, ultimamente, de que o velho e querido Dick está por perto. Às vezes, quando acordo, tenho a impressão de me lembrar vagamente de tê-lo visto no meu sonho. Como se suas feições estivessem desaparecendo de vista.

Ele parou aqui por tanto tempo que fiz outra tentativa de tirar proveito de sua abstração.

Por um esforço de vontade, difícil de explicar, guiei sua mão para formar as palavras:

“Uma jarra cheia de beijos para Winkie, como sempre...

Nesse momento, Louis olhou para baixo.

— Por Deus! — exclamou, como se tivesse visto um fantasma.

IV.

— WINKIE” era um apelido carinhoso que dei a Velma quando éramos crianças.

Louis sempre sustentou que ele não fazia sentido e se recusou a adotá-lo, embora eu a chamasse assim anos depois. Por sua própria vontade, Louis nunca teria mencionado algo tão sociável quanto uma jarra cheia de beijos.

Então, durante os meses cansativos antes de seu retorno como inválido, eu trabalhei. Quando deixou a França, no momento do embarque, ainda estava de muletas, mas prometia voltar a andar sem ajuda da perna em pouco tempo. Durante toda a viagem, eu pairava perto dele, compartilhando sua impaciência, o desejo por aquela que nós dois mais adorávamos.

Sobre a dor enorme do reencontro — no qual eu estava presente, mesmo não estando — falarei brevemente. Mais linda que nunca, mais atraente com sua cor vívida e profunda, Velma ao vivo era uma visão que mexia com minha saudade e acendia minha chama.

Louis mancava com dor, descendo a prancha. Quando eles se encontraram, ela repousou a cabeça, quieta, em seu ombro por um momento; depois — com os olhos mareados — ajudou-o, com a solicitude carinhosa de uma mãe, ao carro que estava esperando.

Dois meses depois, estavam se casando. Senti essa dor menos do que teria sentido, não fosse o acontecido algo essencial para meus planos.

No entanto, qualquer vaga esperança que eu pudesse ter de desfrutar indiretamente as delícias do amor foi frustrada. Não conseguia explicar por quê; apenas sabia que algo me impedia de entrar na intimidade sagrada de sua vida, como se um muro de defesa se interpusesse. Era desconcertante, mas um fato muito presente, contra o qual achei inútil me rebelar. Desde então, aprendi — mas não importava. * * *

Não fazia diferença ao meu propósito, que dependia da habilidade que eu estava adquirindo de influenciar os pensamentos e as ações de Louis — de parcialmente controlar suas faculdades.

A ocupação em que ele se envolveu, limitado como estava pela perna engessada, me ajudou materialmente. Com frequência, após um interminável turno no banco, ele voltava à noite com o cérebro tão cansado e entorpecido que era uma simples questão de imprimir minha vontade à dele. Cada tentativa bem-sucedida também facilitava a próxima.


A consequência inevitável seria que, com o tempo, Velma perceberia suas aberrações e demonstraria preocupação.

— Por que você me falou, quando entrou ontem à noite, "Tem um bode na escada — será que podem tirar ele de lá?"— ela perguntou em uma manhã.

Ele fiou envergonhado a toalha de mesa.

— Não sei o que me fez falar isso. Parecia que eu queria dizer isso, e essa era a única maneira de tirar da cabeça. Pensei que você fosse achar que era uma piada — ele moveu os ombros, tentando retirar um fardo desagradável.

— E o que te fez usar gravata para ir para a cama? — ela perguntou com ironia.

Ele assentiu, concordando. — Eu sabia que era estúpido, mas a ideia grudou na minha cabeça. Parecia que o único jeito que eu poderia ir dormir era aceitando. Só faço coisas estranhas assim se estiver muito cansado.

Ela não disse mais nada na hora, mas naquela noite abordou a questão de procurar um trabalho, uma ocupação menos sedentária — assunto a que voltaria constantemente.

Então aconteceu algo que traria muitas possibilidades, e que me surpreendeu e animou.

Exausto, com as forças nervosas exauridas até a última gota, Louis retornava uma noite do banco para casa, seguindo as horas extras normais de fim de mês. Quando se afastou do estacionamento, pairei sobre ele, subjugando sua personalidade, forçando o controle, que com o esforço da vontade eu gradualmente aprendera a lhe direcionar. O processo só pode ser explicado de forma grosseira: era como se eu disputasse, às vezes com sucesso, a posse do volante do carro humano que ele dirigia.

Velma estava esperando quando chegamos. Quando os pés de Louis soaram na soleira do apartamento, ela abriu a porta, segurou suas mãos e puxou-o para dentro.

Nesse momento, me senti inexplicavelmente emocionado. Era como se uma mudança maravilhosa tivesse ocorrido em mim. Então, quando encontrei seu olhar, eu sabia o que era essa mudança.

Segurei suas mãos, em um contato real de carne e osso. Eu olhava para ela pela visão de Louis!

V.

O choque me custou o que eu havia ganhado. Abalado, senti a personalidade que havia subjugado recuperar seu domínio.

No momento seguinte, Louis estava olhando para Velma, perplexo Seus olhos estavam alarmados.

— Você... você me assustou! — ela engasgou, retirando as mãos, que eu tinha praticamente esmagado. — Louis, querido — nunca mais olhe para mim desse jeito!

Posso imaginar a intensidade devoradora do olhar que brilhou nos olhos dele, naquele breve momento em suas feições eram minhas.

Desde então, meus planos se fixaram rapidamente. Dois modos de ação se apresentavam O primeiro e mais atraente, no entanto, fui forçado a abandonar. Era apenas o sonho louco de tomar posse exclusiva do corpo de Louis — de forçá-lo a descer para o lugar secundário que eu ocupava.

Apesar do progresso que fizera, isso se mostrou inexplicavelmente difícil. Por um lado, parecia haver uma afinidade entre o corpo de Louis e sua personalidade, o que me expulsava quando ele estava moderadamente descansado. Eu poderia ter enfraquecido esse vínculo, mas havia outros fatores.

Um era sua crescente convicção de que algo estava radicalmente errado. Com a faculdade por mim descoberta de me relacionar com ele e ler seus pensamentos, sabia que às vezes ele temia estar ficando louco.

Certa vez, tive a experiência de acompanhá-lo a um alienista e lá, como a proverbial mosca na parede, ouvir nomes científicos eruditos aplicados aos meus esforços. O alienista falou de “dupla personalidade”, “amnésia” e “mente subconsciente”, enquanto eu ria tapando a boca na minha (devo dizer?) manga fantasmagórica.

Mas ele aconselhou Louis a buscar um descanso completo e, se possível, ir para o campo para se fortalecer fisicamente — o que eu mais desejava evitar.

Eu não poderia bancar o Mr. Hyde para o Dr. Jekyll se Louis mantivesse sua virilidade normal.

Os medos de Velma também, eu sabia, estavam crescendo. Com toda a insistência que pôde, sem trair abertamente o alarme, ela o pressionou para que desistisse do emprego no banco e procurasse um trabalho ao ar livre — o que seria menos desvitalizante para uma pessoa com seu temperamento peculiar.

Um dos resultados da debilidade por excesso de trabalho é, aparentemente, privar a vítima de sua iniciativa — faz com que ela tenha medo de desistir dos parcos meios de subsistência que possui, com medo de não conseguir obter outro. Louis estava endividado, ganhando apenas o suficiente para sua subsistência, orgulhoso demais para deixar Velma ajudar como ela desejava, sua perna sendo uma desvantagem no campo industrial. De fato, ele estava exatamente na situação que eu desejava, mas eu sabia que com o tempo os desejos dela prevaleceriam.

No entanto, as circunstâncias que me privaram da esperança de usurpar completamente seu lugar foram as seguintes: eu não consegui, por muito tempo, encarar o olhar de Velma. A verdade personificada, a pureza neles habitante, parecia dissolver meu poder, me jogar de volta no relacionamento secundário que eu passara a ter com Louis.

Ele às vezes ficava tentado a dizer-lhe: — Você me dá o único fio de sanidade.

Testemunhei seu pânico ao pensar em perdê-la, ao pensar que algum dia ela poderia desistir dele por desgosto de suas aberrações e abandoná-lo à “coisa” sem forma que o perseguia.

Curioso — ser do mundo e não pertencer a ele — desfrutar da perspectiva que revela o lado oculto dos efeitos, que parecem tão misteriosos do lado material do véu. Mas eu daria alegremente todas as vantagens de meu estado desencarnado por uma hora de companhia em carne e osso com Velma.

Meu plano alternativo era o seguinte:

Se eu não conseguia entrar no mundo dela, o que me impediria de trazer Velma para o meu?

VI.

OUSADIA? Com certeza.

Por mais inexperiente que eu fosse nas leis que regem esse mistério da passagem do estado físico para outro estado de existência, eu só poderia esperar que o plano funcionasse. Poderia — e foi o suficiente para mim. Eu apostei. Arriscando tudo, posso ganhar tudo — posso ganhar -

O pensamento do que eu poderia ganhar me transportou a um paraíso de dor e êxtase.

Velma e eu — em um mundo à parte, um mundo só nosso — livres das amarras sórdidas que estragam a perfeição da mais bela existência terrestre. Velma e eu — juntos por toda a eternidade!

Tanta razão eu tinha para ter esperança! Observei que outras pessoas passavam pela mudança chamada morte, e que algumas entraram em um estado de existência no qual eu estava ciente delas e elas de mim. Eram criaturas desinteressantes, quase totalmente preocupadas com seus antigos interesses terrenos; mas estavam no mundo tanto quanto eu estivera no mundo de Velma e Louis antes daquele fragmento de estilhaço me tirasse do campo.

Alguns, é verdade, ao abandonarem suas moradias físicas, pareciam emergir a uma esfera em que eu não conseguia seguir. Isso me incomodava. Velma poderia fazer o mesmo. Ainda assim, recusei-me a admitir a probabilidade — recusei considerar o possível fracasso do meu plano. A própria intensidade do meu desejo a atraía para mim.

O abismo que nos separava era atravessado pela sepultura. Assim que Velma cruzasse para o meu lado do abismo, não haveria como ela voltar para Louis.

No entanto, eu era astuto. Ela não deveria chegar até mim com remorsos que a fariam desejar Louis como eu agora a desejava. Se eu pudesse inspirá-la com horror e ódio por ele... se eu pudesse! Se eu pudesse!

Como etapa preliminar, deveria induzir Louis a comprar o instrumento com o qual meu objetivo seria realizado. Não era algo fácil, pois nas noites em que saía do banco, durante o horário comercial, ele tinha vigor suficiente para resistir à minha vontade. Eu só conseguia trabalhar por sugestão.

Na vitrine de uma casa de penhores pela qual ele passava todos os dias, notei um revólver em destaque. Todo o meu esforço concentrou-se em chamar sua atenção para ele.

Na segunda noite, ele olhou para o revólver, mas não parou. Três noites depois, atraído por um fascínio que não conseguia explicar, ele parou e olhou para a arma por vários minutos, lutando contra um impulso que parecia comandar: “Entre e compre! Compre! Compre!

Quando, algumas noites depois, ele chegou em casa com o revólver e uma caixa de cartuchos que o penhorista havia incluído na venda, escondeu-os às pressas em uma gaveta de sua escrivaninha.

Nada disse sobre sua compra; mas, no dia seguinte, Velma encontrou a arma e perguntou a respeito.

Visivelmente confuso, ele respondeu: — Ah, pensei que pudéssemos precisar de algo assim. Vi em uma vitrine e meio que fiquei com a ideia de comprá-lo. Ultimamente tem muitas casas sendo roubadas, e é bom estar preparado.

Agora, com impaciência, eu esperava a oportunidade de encenar o desenlace.

Ele ocorreu, naturalmente, no final do mês, quando Louis, após um longo dia de trabalho, voltou para casa, pouco depois da meia-noite, com o cérebro nublado de se debruçar sobre intermináveis colunas de números. Quando seus pés subiram as escadas até o apartamento, não foram suas faculdades que os dirigiram, mas as minhas — astúcia, alerta, em chamas com propósito mortal.

Nunca houve uma preliminar tão estranha para um assassinato — a entrada, disfarçada de uma forma querida e familiar, de um demônio encarnado, com a intenção de destruir a flor da casa.

Falo de um demônio encarnado, embora fosse eu esse demônio, pois não entrei no corpo de Louis com plena expressão de minhas faculdades. Ao assumir a vida física, minha lembrança da existência como entidade espiritual sempre foi sombria. Levei adiante os impulsos dominantes que me haviam agir ao entrar no corpo, mas pouco mais.

E o impulso que eu carregava naquela noite era o impulso de matar.

VII.

Com o máximo cuidado, entrei no quarto.

Meu controle do corpo de Louis era completo. Senti-me, talvez pela primeira vez, tão seguro corporalmente que o vago medo de ser expulso não me oprimia.

O quarto estava escuro, mas a respiração suave e regular de Velma, adormecida, chegava aos meus ouvidos. Era como o convite que surge quando sentimos o cheiro de vinho velho que os lábios estão prestes a beber — acelerando minha ansiedade e incendiando meu cérebro.

Não pensei em amor. Desejei — mas meu desejo era destruir aquele belo corpo — matar!

Contudo, eu era astuto — bem astuto. Com cautela, tateei até a escrivaninha e peguei o revólver, enchendo as câmaras com emissários de chumbo da morte.

Quando tudo estava pronto, acendi a luz.

Ela acordou quase instantaneamente. Quando o brilho inundou a sala, um grito assustado subiu aos seus lábios. Ele congelou, sem palavras, enquanto — subindo meio tom — ela encontrou meu olhar.

Sua beleza — a escuridão negra do cabelo caindo sobre seus ombros nus, os seios cheios e arfantes, atiçou a chama de minha paixão sangrenta em fúria. Em um êxtase de triunfo, fiquei admirando a cena.

Enquanto eu contemporizava o desejo de matar — prolongando a deliciosa sensação — ela lutava pelo autocontrole.

— Louis! — O nome foi ofegando pelos lábios brancos.

Involuntariamente, eu me encolhi, cambaleando sob seu olhar. Algo adormecido parecia erguer-se, protestando fracamente contra o que eu procurava fazer. O revólver nivelado oscilava na minha mão.


Mas o tom de pânico em sua voz reavivou meu propósito. Eu ri, zombeteiro.

— Louis! — o tom era afiado, mas com terror. — Louis... largue essa pistola! Você não sabe o que está fazendo.

Ela lutou para se levantar, e agora estava diante de mim. Deus! que lindo — que tentador aquele seio branco e nu!

— Abaixe essa pistola! ela ordenou, histérica.

Estava frenética de medo. E seu medo era como a explosão de uma forja no calor branco da minha paixão.

Eu zombei dela. Uma risada estridente e maníaca explodiu na minha garganta. Ela disse que eu não sabia o que estava fazendo! Ah, sim, eu sabia.

— Eu vou matar... matar você! — gritei, e ri novamente.

Ela balançou para a frente como um fantasma, enquanto eu atirava. Ou talvez esse tenha sido o truque dos meus olhos enquanto a escuridão me dominava.

VIII.

ALGUMAS imagens fragmentárias se destacam em minha lembrança, como camafeus nítidos no pergaminho do passado.

Uma é de Louis, parado atordoado — ligeiramente balançando como se estivesse com vertigem — olhando para o revólver fumegante em sua mão. No chão diante dele, uma figura enrugada em ébano, branco e carmesim vívido.

Então, uma confusão de homens e mulheres assustados em trajes indefinidos, estranhos e variados — policiais uniformizados irrompendo no quarto e tirando o revólver da mão sem resistência de Louis — esforços desajeitados para erguer o corpo vestido de branco até a cama — uma mancha carmesim espalhando-se sobre o lençol... um médico, vestido com camisa sem gola e chinelos, curvado sobre ela * * *

Finalmente, após um lapso de horas, uma atmosfera silenciosa — enfermeiras eficientes — o início do delírio.

E outra foto — de Louis, encolhendo-se atrás das grades de sua cela, após lhe ser negado o privilégio de visitar a cabeceira de sua esposa — derrotado, temendo o anúncio de sua morte a cada hora — cheio de horror indescritível de si mesmo.

Velma ainda vivia. A bala havia perfurado seu pulmão esquerdo e a vida estava por um fio tênue. Ao seu lado, eu observava com interesse desapaixonado a batalha pela vida. por um tempo, eu parecia emocionalmente esgotado. Havia feito um esforço supremo — os eventos agora seguiriam seu curso inevitável e mostrariam se eu havia cumprido meu propósito. Não me senti ansioso nem muito feliz, nem arrependido nem triunfante — apenas curioso e impessoal.

Uma febre diminuiu as poucas chances de recuperação de Velma. Delirando, seus pensamentos pareciam sempre em Louis. Às vezes, ela murmurava o nome dele, suplicante, com ternura; depois gritava de terror, um ensaio fugaz da cena em que ele estava diante dela, o brilho louco nos olhos, o revólver apontado na mão. Mais uma vez ela implorou que ele desistisse do trabalho no banco; em outras ocasiões, ela parecia pensar que ele ainda estava nos campos de batalha da Europa.

Apenas uma vez ela pareceu pensar em mim — quando sussurrou o nome pelo qual eu a havia chamado, — Winkie! — e acrescentou:  — Dick! — Mas, exceto por essa vez, era sempre “Louis! Louis!

A reiteração constante do nome dele finalmente dissipou a apatia do meu espírito.

Toda a fúria vingativa contra ele, que experimentei quando minha alma foi lançada para a região dos desencarnados, voltou com intensidade e frustração.

Quando a febre de Velma baixou, quando a longa luta pela recuperação começou e ela voltou para o reino físico, quando eu soube que havia falhado — impedido de abater minha presa — tive pelo menos essa satisfação:

Nunca mais esses dois — o homem que eu odiava e a mulher por quem ansiava — seriam um para o outro como haviam sido no passado. A perfeição de seu amor havia sido irremediavelmente prejudicada. Ela nunca olharia para ele sem se encolher por dentro. Sempre, de sua parte, de ambas as partes, haveria uma corrente de medo de que o incidente pudesse se repetir, uma ameaça cinzenta, envenenando cada momento de suas vidas.

Eu não tinha planejado e enganado — e ousado — em vão.

Este foi meu pensamento quando Louis foi libertado da prisão, porque ela se recusou a processá-lo. Achei graça quando, em seu primeiro abraço, as lágrimas de desespero escorreram pelas faces dos dois. E novamente quando eles começaram a tentativa lamentável de reconstruir sobre o fundamento quebrado do amor.

E então — assustadora, astuta, como um pássaro de mau agouro lançando a sombra das asas silenciosas sobre a paisagem — veio a retaliação.

Muitas vezes, em retrospecto, vivi aquela breve hora de meu retorno à expressão física — minha hora de realização. Como um fantasma, surgiu uma visão de Velma — como estava diante de mim naquela noite, olhando-me com horror. Eu vi o medo se aprofundar — abjeto até o desespero.

Como ela estava linda! Mas, quando tentei imaginar aquela beleza, só conseguia me lembrar de seus olhos. Não importava se eu desejava vê-los ou não — eles preenchiam meu olhar.

Pareciam me assombrar. Aos poucos, tornei-me agudamente consciente deles. De forma desconcertante, eles olhavam para mim de todos os lugares — olhos cheios de medo — olhos fixos, cheios de acusações horrorizadas.

A beleza que um dia cobicei tornou-se algo proibido, mesmo na memória. Se eu procurasse espiar através do véu como antes — para testemunhar suas patéticas tentativas de retomar a antiga vida com Louis — novamente vinham aqueles olhos!

Talvez possa soar estranho que uma criatura desencarnada — alguém a quem você chamaria de fantasma — lamentasse por estar sendo assombrada. No entanto, assombrar é do espírito, e nós do mundo espiritual estamos imensuravelmente mais sujeitos a suas condições do que aqueles cuja consciência está centrada na esfera material.

Deus! Os olhos. Há uma tortura física refinada que consiste em deixar cair água, gota a gota, por uma eternidade de horas, sobre a testa da vítima. Imagine isso multiplicado por mil, e pode ter uma vaga ideia da minha tortura — de ver em todos os lugares, constantemente, interminavelmente, duas esferas sempre preenchidas com a mesma expressão de horror e reprovação.

Muito aprendi desde que entrei na Terra das Sombras. Naquela época eu não sabia, como sei agora, que minha punição não era uma aflição externa, mas o simples resultado da lei natural. As causas postas em movimento devem produzir sua reação completa. O seixo, lançado em uma poça tranquila, faz ondulações que com o tempo voltam ao local de origem. Eu havia lançado mais do que uma pedra, perturbando a harmonia da vida humana; devido à minha intensa preocupação com um único objetivo, atrasei mais do que o normal a reação e criei para mim um inferno. Inevitavelmente, fui atraído para isso.

Foi-se todo desejo que eu tinha de ficar perto dos dois que, há tanto tempo, absorviam minha atenção. Assombrado, atormentado, açoitado por aqueles terríveis acusadores, procurei fugir até os confins da terra. Não havia escapatória; enlouquecido, eu ainda lutava para escapar, porque esse é o impulso cego das criaturas sofredoras.

As emoções que tanto me influenciaram quando tentei destruir a vida das duas pessoas que me amavam agora pareciam insignificantes em comparação com meu sofrimento. Nenhum tormento físico pode ser comparado ao que me engolfou até que meu próprio ser fosse apenas uma massa fervilhante de agonia. Através dele, lancei maldições ao mundo, a mim, ao criador. Proferi blasfêmias horríveis.

E, finalmente, rezei.

Foi um grito de misericórdia — o apelo inarticulado de uma alma torturada para que a dor parasse — mas, de repente, uma paz parecia ter caído sobre o universo.

Desprovido de sofrimento, senti-me como alguém que deixou de existir.

Do silêncio, veio uma resposta sem palavras. Bateu em minha consciência como o golpe das ondas do mar.


As palavras conhecidas pelos ouvidos humanos não transmitiriam o significado da mensagem que recebi — se de uma fonte externa ou brotando de dentro, não sei. Tudo o que sei é que me encheu de uma esperança estranha.

Mil anos ou um único instante — pois o tempo é relativo — a trégua durou. Então, afundei, ao que parecia, até o antigo nível de consciência, e o tormento se renovou.

Eu sabia agora que deveria suportar — e por quê. Um estranho e novo propósito preencheu meu ser. A luz do entendimento raiou sobre minha alma.

E assim retomei minha vigília na casa de Velma e Louis.

IX.

Velma tinha um coração valente — destemido e verdadeiro.

Com os efeitos da tragédia ainda aparentes na palidez, na fraqueza, no comportamento abalado e na atitude furtiva e desconfiada de Louis, ela conseguiu encontrar um lugar para ele como superintendente de uma pequena propriedade rural.

Já disse que deixei de sentir o tormento da paixão por Velma no maior tormento de sua reprovação. Ah! mas nunca deixei de amá-la. Como percebia, eu havia profanado aquele amor, transmutando-o em uma farsa horrível; havia, em minha ignorância abismal, procurado obter o que desejava destruindo-o; ainda assim, acima de tudo, eu tinha amado.

Bem, eu sei, agora, que se eu tivesse conseguido o que queria para ela, Velma teria ascendido a uma esfera totalmente além da minha compreensão. O destino misericordioso impediu meu objetivo — tornou possível uma leve restituição.

Voltei para Velma, amando-a com um novo amor, um amor altruísta, não contaminado pelo pensamento de posse.

Mas, para ajudá-la, deveria novamente feri-la de maneira cruel.

Fora do caos de sua vida, ela restaurou aos poucos uma aparência de harmonia. Quase conseguiu convencer Louis de que a antiga companheira pacífica havia retornado; mas para quem podia ler seus pensamentos, o pesadelo que pairava entre eles pesava, cruel, sobre sua alma.

Ela nunca conseguiu olhar nos olhos do marido sem uma suspeita disfarçada do que poderia estar nas profundezas; não conseguia se recompor para dormir sem tremer, com medo de acordar e se encontrar confrontada por um demônio em forma humana. Eu tinha feito meu trabalho muito bem!

Agora, lenta e inexoravelmente, comecei de novo a minar o controle mental de Louis. Precisava percorrer o antigo terreno novamente, porque ele ganhou força com a trégua que lhe dei; sua vida ao ar livre deu-lhe um vigor mental com o qual eu não precisava lutar antes. Por outro lado, estava de posso de um novo conhecimento do poder que pretendia exercer.

Não vou relatar novamente os estágios sucessivos pelos quais consegui, primeiro influenciar sua vontade, depois subjugá-la parcialmente e, por fim, colocar sua personalidade em segundo plano por períodos indefinidos. Pode-se imaginar o terror que o dominou quando ele percebeu que estava se tornando presa de suas antigas aberrações.

Para proteger Velma, realizei meus experimentos, quando possível, quando ele estava longe dela. Mas ela não podia ignorar por muito tempo o mau humor, a inclinação abatida de seus ombros, que acompanhava sua percepção de que a velha doença havia retornado. O terror crescente em sua expressão era como um flagelo em meu espírito — mas eu precisava feri-la para poder curá-la.

Mais de uma vez, fui forçado a exercer meu poder sobre Louis para impedi-lo de tomar medidas violentas contra si mesmo. À medida que ganhei ascendência, uma determinação de acabar com tudo cresceu sobre ele. Ele temia que, a menos que saísse da vida de Velma, a insanidade voltasse e o forçasse novamente a cometer um ataque frenético contra quem mais amava. Também não conseguia evitar ver a apreensão em seus modos, dizendo o que ela já sabia — o encolhimento que ela tentava corajosamente esconder.

Embora meu poder sobre ele fosse maior do que antes, era também intermitente. Nem sempre eu conseguia exercê-lo. Não consegui, por exemplo, impedir que um dia ele pegasse emprestado um revólver de um fazendeiro vizinho, sob pretexto de usá-lo contra um vira-latas que recentemente visitara o galinheiro.

Embora eu conhecesse sua verdadeira intenção, o máximo que pude fazer — pois sua personalidade era dominante na época — foi influenciá-lo a adiar o ato planejado.

Naquela noite, tomei posse de seu corpo enquanto ele dormia. Velma estava deitada, respirando calmamente, no quarto ao lado — pois quando esse processo terrível aconteceu, eles, por meio de um entendimento tácito, passaram a ocupar quartos separados.

Vesti-me parcialmente, desci as escadas e fui até o depósito de ferramentas onde Louis — temendo deixar o revólver perto dele em casa — o havia escondido. Quando voltei, todo o meu ser se rebelou contra o que tinha diante de mim — mas era inevitável, para restaurar a Velma o que havia arrancado dela.

Embora eu tenha entrado silenciosamente em seu quarto, um suspiro — ou melhor, uma inspiração rápida e histérica — me alertou de que ela havia acordado.

Acendi a luz.

Ela ficou em silêncio. Seu rosto ficou branco como mármore. A expressão nos olhos me torturou.

Por um momento, fiquei cambaleando diante dela, com o revólver apontado — como havia estado naquela outra ocasião, meses antes.

Lentamente, abaixei o revólver e sorri — não como Louis teria sorrido, mas como um maníaco com seu rosto teria sorrido.

Seus lábios formaram a palavra “Louis”, mas, tomada pelo desespero, ela não emitiu nenhum som. Era o desespero não apenas de uma mulher que se sentia condenada à morte, mas que entregava seu ente querido a um destino pior que a morte.

Mesmo assim sorri — com dificuldade crescente, pois a personalidade de Louis era inquieta e meu tempo no corpo usurpado era curto.

Naquele momento, eu não estava a fim de desistir de seu corpo. Com esse novo vislumbre de sua beleza através da visão física, meu amor por Velma se inflamou com uma intensidade até então inconsciente. Por um instante, quase esqueci meu propósito de voltar. Esquecido o que havia conhecido desde a última vez que ocupei o corpo em que a encarei. Esqueci tudo — exceto Velma.

Quando dei um passo à frente, com os braços estendidos, meus olhos expressando Deus sabe que desejo profundo, ela gritou.

A escuridão tomou conta de mim. Tropecei. Eu estava sendo forçado a sair... Aquele grito de terror vibrou na alma de Louis e ele lutava para responder.

Instintivamente, lutei contra a escuridão, agarrei-me à minha influência duramente conquistada. Um momento de conflito, e novamente venci.

Sorri mais uma vez. O efeito disso deve ter sido estranho, pois me enfraqueci e Louis voltou ao ataque, persistente. Minha língua se esforçou para falar:

— Desculpe—Winkie— não vai acontecer novamente—Eu não vou—voltar——”


QUANDO me recuperei da inconsciência momentânea que acompanha a transição do físico para o espiritual, Louis olhava assustado para a figura encolhida de Velma, que havia desmaiado. No instante seguinte, ele a tomou nos braços.

Embora eu tivesse quase falhado ao tentar transmitir minha mensagem, tinha certeza de que minha visita não fora em vão. Com clara presciência, eu sabia que pronunciar aquele velho e conhecido apelido, “Winkie”, teria um significado incalculável para Velma — que dali em diante não temeria mais o que poderia ver nas profundezas dos olhos de seu marido — que com um retorno de sua antiga confiança nele, a apreensão seria banida para sempre de suas vidas.


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