"Forma, Substância e Diferença", de Gregory Bateson
[Bateson, G. (2000). Steps to an ecology of mind: Collected essays in anthropology, psychiatry, evolution, and epistemology. University of Chicago press.]
Devo dizer que é uma honra extraordinária estar aqui nesta noite, e um prazer. Estou com um pouco de medo de todos vocês, e tenho certeza de qu há pessoas aqui que conhecem melhor do que eu todos os campos do conhecimento mencionados. É verdade que tangencio vários campos, e provavelmente posso encarar qualquer um aqui e dizer que já estudei um campo que você não estudou. Mas tenho certeza de que para cada campo que menciono, há pessoas aqui que sabem muito mais do que eu. Não sou um filósofo formado, filosofia não é o meu campo. Não sou um antropólogo formado, e antropologia não é o meu campo.
Mas tentei fazer uma coisa com que Korzybski se preocupava muito, e que preocupa todos o movimento semântico: estudei a área de impacto entre o pensamento muito abstrato e formal de um lado e a história natural do ser humano e das outras criatura do outro. Essa sobreposição entre premissas formais e comportamento real é, eu afirmo, de uma importância tremenda hoje. Vemos um mundo que está ameaçado não apenas por vários tipos de desorganização, mas também pela destruição do seu ambiente; e nós, ainda hoje, não conseguimos pensar com clareza sobre as relações entre um organismo e seu ambiente. Que tipo de coisa é essa, a que chamamos “organismo mais ambiente” ?
Vamos voltar à afirmação original que tornou Korzybski famoso – a afirmação de que o mapa não é o território. Essa afirmação aparece em vários exemplos do pensamento filosófico, até a Grécia, e perpassa a história do pensamento europeu nos últimos 2000 anos. Nessa história, houve um tipo de básica dicotomia e uma controvérsia frequente. Houve violenta inimizade e derramamento de sangue. Tudo começa, eu creio, com os pitagóricos contra seus predecessores, e o argumento tomava a forma de “Você pergunta do que é feito – terra, fogo, água, etc? Ou pergunta qual o padrão?” Pitágoras escolheu perguntar sobre os padrões em vez de sobre a substância.1 Essa controvérsia se manteve em todas as épocas, e a metade pitagórica dela foi, até recentemente, a metade integralmente submersa. Os gnósticos vieram depois dos pitagóricos, os alquimistas depois dos gnósticos, e assim por diante. O argumento chegou a uma espécie de clímax ao final do século dezoito, quando uma teoria evolucionária pitagórica foi criada e depois descartada – uma teoria que envolvia a Mente2.
A teoria evolucionária do final do século dezoito, a teoria de Lamarck – a primeira teoria transformista organizada relativa à evolução – foi desenvolvida em um curioso pano de fundo histórico, descrito por Lovejoy em The Great Chain of Being. Antes de Lamarck, acreditava-se que o mundo orgânico, o mundo vivo, tinha uma estrutura hierárquica, com a Mente no topo. A corrente, a ou a escada, descia pelos anjos, os humanos, os macacos, até os infusoria ou protozoa, descendo até as plantas e pedras.
O que Lamarck fez foi virar essa corrente de cabeça para baixo. Ele observou que os animais mudavam devido à pressão ambiental. Estava incorreto, é claro, em crer que essas mudanças eram herdadas; mas, em todo caso, elas eram para ele evidência de evolução. Quando inverteu a escada, o que tinha sido a explicação, isto é, a Mente no topo, tornou-se agora o que precisava ser explicado. Seu problema era explicar a Mente. Ele estava convencido sobre a evolução, e ali parou seu interesse. Então, se você ler seu Philosophic Zoologique (1809), verá que o primeiro terço é dedicado a resolver o problema da evolução e inversão da taxonomia; o resto do livro é na verdade dedicado à psicologia comparada, uma ciência que ele fundou. Seu interesse real era a Mente . Ele usara o hábito como fenômeno axiomático na sua teoria da evolução, e é claro que isso o levou ao problema da psicologia comparada.
Agora, mente e padrões como princípios explicativos que, acima de tudo, exigiam investigação, foram enxotados do pensamento biológico nas teorias evolucionárias posteriores, que foram desenvolvidas no meio do século dezenove por Darwin, Huxley, etc. Ainda havia alguns bagunceiros, como Samuel Butler, dizendo que não se poderia ignorar a Mente desse jeito – mas eram vozes fracas e, incidentalmente, eles nunca estudavam os organismos. Acho que Butler nunca observou um animal, com exceção do próprio gato, mas ainda sabia mais sobre evolução do que alguns dos pensadores mais convencionais.
Enfim, com a descoberta da cibernética, da teoria dos sistemas, da teoria da informação, entre outras, começamos a ter uma base formal que nos permite pensar sobre a mente e nos habilita a pensar sobre todos esses problemas de um modo que seria totalmente heterodoxo entre 1850 e a Segunda Guerra Mundial. O que tenho a dizer é sobre como a grande dicotomia da epistemologia mudou sob o impacto da cibernética e da teoria da informação.
Podemos agora dizer – ou, de todo modo, começar a dizer – o que pensamos que a mente é. Nos próximos vinte anos, haverá outros modos de dizê-lo e, como as descobertas são recentes, posso dar apenas minha versão pessoal. As antigas versões com certeza estão erradas, mas qual das imagens revisadas vai sobreviver eu não sei.
Vamos começar pelo lado evolucionário. Hoje é empiricamente claro que a teoria evolucionária de Darwin cometia um grande erro ao identificar a unidade de sobrevivência sob a seleção natural. Acreditava-se que a unidade crucial, ao redor da qual a teoria estava erguida, era ou a procriação individual ou a linhagem familiar, ou a sub-espécie ou algum conjunto homogêneo semelhante de especificidades. Vou sugerir que os últimos duzentos anos demonstraram que se um organismo, ou um agregado de organismos começa a trabalhar com foco em sua própria sobrevivência, e pensa que esse é o modo de selecionar seus movimentos adaptativos, seu “progresso” acaba em um ambiente destruído. Se um organismo acaba destruindo seu ambiente, de fato destrói a si mesmo. E podemos facilmente ver esse processo levado até o reductio ad absurdum total nos próximos vinte anos. A unidade de sobrevivência não é um organismo procriante, ou a linhagem familiar, ou a sociedade.
A antiga unidade já foi parcialmente corrigida peos geneticistas populacionais. Eles insistiram que a unidade evolucionária é, de fato, não homogênea. Uma população selvagem de qualquer espécie sempre consiste de indivíduos cuja constituição genética varia grandemente. Em outras palavras, potencialidade e prontidão para mudanças são itens já inseridos na unidade de sobrevivência. A heterogeneidade da população selvagem já é metade desse sistema de tentativa e erro necessário para se lidar com o ambiente.
As populações artificialmente homogeneizadas de plantas e animais domésticos não são aptas a sobreviver.
E hoje mais uma correção da unidade é necessária. O ambiente flexível também deve ser incluído com o organismo flexível pois, como já disse, o organismo que destrói seu ambiente destrói a si mesmo. A unidade de sobrevivência é um organismo-em-seu-ambiente flexível. Agora, vamos deixar a evolução por um momento para considerar qual é a unidade da mente. Vamos voltar ao mapa e ao território, e perguntar: “O que, do território, entra no mapa?” Sabemos que o território não entra no mapa. Este é o aspecto central em que todos concordamos. Se o território fosse uniforme, nada entraria no mapa exceto suas fronteiras, que são os pontos em que ele deixa de ser uniforme em relação a uma matriz maior. O que entra no mapa, na verdade, são das diferenças, seja uma diferença de altitude, uma diferença de vegetação, uma diferença de estrutura populacional, diferença de superfície, o que for. Diferenças são as coisas que entram em um mapa.
Mas o que é uma diferença? Uma diferença é um conceito muito peculiar e obscuro. Com certeza não é uma coisa ou um evento. Este pedaço de papel é diferente da madeira deste atril. Há muitas diferenças entre eles – e de cor, textura, forma, etc. Mas, se começamos a perguntar sobre a localização dessas diferenças, criamos um problema. É obvio que a diferença entre o papel e a madeira não está no papel; obviamente, não está na madeira; obviamente, não está no espaço entre eles, e obviamente não está no tempo entre eles (a diferenças que ocorrem no tempo, chamamos de “mudança”).
Uma diferença, então, é um problema abstrato.
Nas ciências exatas, os efeitos são, em geral, causados por condições ou eventos bastante concretos – impactos, forças, e assim por diante. Mas quando entramos no mundo da comunicação, da organização, etc, abandonamos esse mundo em que efeitos são gerados por forças e impactos e trocas de energia. Entramos em um mundo em que “efeitos” – e não tenho certeza de que ainda se deva usar a mesma palavra – são gerados por diferenças. Isto é, eles são gerados pelo tipo de “coisa” que entra no mapa a partir do território. Isso é diferença.
Ela viaja do papel e da madeira para a minha retina. É depois escolhida e trabalhada nesse complexo maquinário computacional na minha cabeça. Toda a relação de energia é diferente. No mundo da mente, nada – aquilo que não é – pode ser uma causa. Nas ciências exatas, pedimos causas e esperamos que elas existam e que sejam “reais”, Mas lembrem-se que zero é diferente de um, e como zero é diferente de um, zero pode ser uma causa no mundo psicológico, o mundo da comunicação. A carta que você não escreve pode receber uma resposta zangada; a declaração de renda que você não preenche pode acionar os agentes da Receita, por eles, também, tomam café da manhã, almoço e janta e podem reagir com energia derivada do seu metabolismo. A carta que nunca existiu não é fonte de energia.
Segue-se, é claro, que devemos mudar toda nossa maneira de pensar sobre o processo mental e comunicacional. As analogias normais da teoria da energia, que as pessoas pegam emprestado das ciências exatas para oferecer um quadro conceitual sobre o qual tentam desenvolver teorias sobre psicologia e comportamento – essa estrutura de Procustes – é uma bobagem. Está errada.
Sugiro aqui, agora, que a palavra “ideia”, em seu sentido mais elementar, é sinônimo de “diferença”. Kant, na Crítica ao Juízo – se eu o entendi corretamente, afirma que o ato estético mais elementar é a seleção de um fato. Ele diz que em um pedaço de giz há um número infinito de fatos potenciais. A Ding an sich, o pedaço de giz, nunca pode entrar no processo comunicacional ou mental, por causa de ssa infinitude. Os receptores sensoriais não podem aceitá-lo, eles o filtram. O que eles fazem é selecionar alguns fatos do pedaço de giz, que então se tornam, em terminologia moderna, informação Sugiro que a afirmação de Kant pode ser modificada para dizer que há um infinito número de diferenças ao reador e no pedaço de giz. Há diferenças entre o giz e o resto do universo, entre o giz e o sol ou a lua. E, dentro do pedaço de giz, há, para cada molécula, um infinito número de diferenças entre sua localização e onde ela poderia estar. Dessa infinitude, selecionamos um número muito limitado, que se torna informação. De fato, o que chamamos informação – unidade elementar da informação – é uma diferença que faz uma diferença, e consegue fazer uma diferença porque os caminhos neurais em que viaja e onde é continuamente transformada são, eles mesmos, energizados. Os caminhos estão prontos para serem acionados. Podemos até dizer que a questão já está implícita neles.
Há, contudo, um contraste importante entre a maior parte dos caminhos de informação entre do corpo e a maioria dos caminhos fora dele. As diferenças entre o papel e a madeira são primeiro transformadas em diferenças na propagação de luz ou som, e viajam dessa forma até meus órgãos sensoriais. A primeira parte dessa jornada é energizada à maneira das ciências exatas, “por detrás”. Mas quando as diferenças entram meu corpo, acionando um órgão, esse tipo de viagem é substituído pela viagem energizada a cada etapa pela energia metabólica latente no protoplasma que recebe adiferença, recria-a ou a transforma, e passa adiante.
Quando acerto a cabeça um prego com um martelo, um impulso é transmitido a esse ponto. Mas é um erro semântico, uma metáfora enganosa, dizer que o que viaja em um axônio é um “impulso”. Seria mais correto chamar de “notícias de uma diferença”.
Seja como for, esse contraste entre caminhos internos e externos não é absoluto. Ocorrem exceções em ambos os lados da linha. Algumas cadeias de eventos recebem energia de um retransmissor, e algumas cadeias de eventos internas ao corpo recebem energia por vias “causais”. Notavelmente, a interação mecânica dos músculos pode ser usada como um modelo computacional.3
Apesar dessas exceções, ainda é ampla verdade que a codificação e a transmissão das diferenças fora do corpo é muito diferente da codificação e da transmissão interna, e essa diferença deve ser mencionada pois pode nos levar a erros. Normalmente, pensamos no “mundo físico” externo como algo separado de um “mundo mental” interno. Creio que essa divisão é baseada no contraste entre codificação e transmissão dentro e fora do corpo.
O mundo mental – a mente – o mundo do processamento de informação – não é limitado pela pele.
Voltemos à noção de que a transformação de uma diferença que viaja em um circuito é uma ideia elementar. Se estiver correta, vamos perguntar o que é uma mente. Dizemos que o mapa é diferente do território. Mas o que é o território? Operacionalmente, alguém saiu com uma retina ou uma trena e fez representações que foram depois postas no papel. O que está no papel é uma representação daquilo que estava na representação da retina da pessoa que fez o mapa; quando prosseguimos com a pergunta, encontramos uma regressão infinita, uma série infinita de mapas. O território nunca entra. O território é Ding an sich , e não se pode fazer nada com ele. Sempre o processo de representação filtra algo, de modo que o mundo mental é composto de mapas de mapas de mapas, ad infinitum. 4 Todos os “fenômenos” são literalmente aparências.
Ou podemos seguir cadeia adiante. Recebo vários tipos de mapeamentos a que chamo dados ou informação. Ao recebê-los, ajo. Mas minhas ações, minhas contrações musculares, são transformações das diferenças do material de entrada [input]. E recebo novamente dados que são transformações de minhas ações. Temos assim uma imagem do mundo mental.
Isto não é novo; para um pano de fundo histórico, novamente voltamos aos alquimistas e aos gnósticos. Carl Jung certa vez escreveu um livrinho curioso, que recomendo a todos. Chama-se Septem Sermones ad Mortuos, Sete Sermões aos Mortos.58 Em suas Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung conta que sua casa estava cheia de fantasmas, e que eram muito barulhentos. Eles o incomodavam, incomodavam sua esposa e seus filhos. No jargão vulgar da psiquiatria, podemos dizer que todos na casa eram psicóticos como corujas, e por bons motivos. Se sua epistemologia é confusa, você fica psicótico, e Jung estava passando por uma crise epistemológica. Então ele sentou-se à escrivaninha, pegou uma caneta e começou a escrever. Quando fez isso, todos os fantasmas desapareceram, e ele escreveu esse pequeno livro. Daí vêm todos os seus insights posteriores. Ele assinou como “Basilides”, um famoso gnóstico de Alexandria do século dois.
Diz ele que há dois mundos. Podemos chamá-los de dois mundos de explicação. Ele os chama de pleroma e creatura, dois termos gnósticos. O pleroma é o mundo em que os eventos são causados por forças e impactos, no qual não há “distinções”. Ou, como eu diria, “diferenças”. No creatura, os efeitos são gerados precisamente por diferenças. De fato, é a mesma velha dicotomia entre mente e substância.
Podemos estudar e descrever o pleroma, mas sempre as distinções que fazemos são atribuídas por nós ao pleroma. O pleroma nada sabe de diferença e distinção; não contém “ideias, no sentido em que normalmente usamos. Quando estudamos o creatura, devemos identificar corretamente as diferenças efetivas nele.
Sugiro que “pleroma” e “creatura” são palavras que podemos adotar de maneira útil, e que por isso vale a pena observar as pontes que existem entre esses dois “mundos”. É uma supersimplificação dizer que as “ciências exatas” lidam apenas com o pleroma e que as ciências da mete lidam somente com o creatura. É mais complexo do que isto.
Primeiro, considerem a relação entre energia e entropia negativa. O clássico motor a vapor de Carnot consiste de um cilindro de gás com um pistão. Esse cilindro entra em contato, alternadamente, com um contêiner de gás quente e um de gás frio. O gás no cilindro se alterna entre expandir e contrair, sendo aquecido ou esfriado pelas respectivas fontes. O pistão é então movido para cima e para baixo.
Mas com cada ciclo do motor, a diferença entre a temperatura das fontes quente e fria é reduzida. Quando essa diferença chega a zero, o motor para.
O físico, descrevendo o pleroma, escreve equações para traduzir a diferença de temperatura em “energia disponível”, que ele chama de “entropia negativa” e daí prossegue.
O analista do creatura notará que todo o sistema é um órgão sensorial, acionado pela diferença de temperatura. Ele chama essa diferença que faz uma diferença de “informação” ou “entropia negativa”. Para ele, é só um caso especial em que a diferença efetiva acontece de ser uma questão energética. Tem o mesmo interesse em todas as diferenças que podem ativar algum órgão sensorial. Para ele, qualquer diferença do tipo é “entropia negativa”.
Ou considerem o fenômeno que os neurofisiologistas chamam de “soma sináptica”. Observa-se que, em alguns casos, quando dois neurônios, A e B, têm conexão sináptica a um terceiro neurônio, C, nenhum disparo dos neurônios é por si só suficiente para disparar C; mas que quando ambos, A e B, são disparados simultaneamente (ou algo próximo a isso), seus “impulsos” combinados levarão ao disparo de C.
Em linguagem do pleroma, essa combinação de eventos que supera um limite se chama “soma”.
Mas do ponto de vista do estudante do creatura (e o neurofisiologista com certeza deve ter um pé no pleroma e outro no creatura), isto não é uma soma, de modo algum. O que acontece é que o sistema opera para criar diferenças. Há duas classes diferenciadas de disparos de A: os que são acompanhados por B e os que não são. De maneira semelhante, há duas classes de disparos de B.
A chamada “soma”, quando ambos disparam, não é um processo aditivo desde ponto de vista. É a formação de um produto lógico – um processo de fracionamento em vez de soma.
Creatura é o mundo visto como mente, sempre que tal visão seja adequada. E sempre que essa visão for adequada, surge uma espécie de complexidade que está ausente da descrição pleromática: a descrição creatural é sempre hierárquica.
Já disse que o que passa do território ao mapa são transformações da diferença e que essas diferenças (selecionadas de algum modo) são ideias elementares.
Mas há diferenças entre diferenças. Toda diferença efetiva denota uma demarcação, uma linha de classificação – e toda classificação é hierárquica. Em outras palavras, diferenças são elas mesmas diferenciadas e classificadas. Nesse contexto, vou tangenciar levemente a questão de classes de diferenças, pois levá-la adiante nos levaria a problemas do Principia Mathematica.
Convido vocês a uma experiência psicológica, nem que seja para demonstrar a fragilidade do computador humano. Notem primeiro que diferenças em textura são diferentes (a) de diferenças em cor. Notem que diferenças em tamanho são diferentes (b) de diferenças em forma. De maneira semelhante, proporções são diferentes (c) de diferenças subtrativas.
Agora convido vocês, como discípulos de Korzybski, a definir as diferenças entre “diferente (a) ,” “diferente (b)” e “diferente (c)” na parágrafo acima. O computador na mente humana trava com essa tarefa. Mas nem todas as classes de diferenças são tão estranhas de se lidar.
Todos conhecemos uma dessas classes. Isto é, a classe de diferenças criadas pelo processo de transformação por meio do qual as diferenças imanentes no território se tornam diferenças imanentes no mapa. No canto de todo mapa sério vemos essas regras de transformação explicitadas – normalmente em palavras. Na mente humana, é absolutamente essencial reconhecer as diferenças dessa classe e, de fato, são estas que formam o tema central de “Ciência e Sanidade”.
Uma alucinação ou imagem de sonho com certeza é uma transformação de algo. Mas, de quê? E por quais regras de transformação?
Por último, há a hierarquia de diferenças que os biólogos chamam “níveis”. Falo de diferenças como as entre uma célula e um tecido, entre tecido e órgão, órgão e organismo, e organismo e sociedade.
São hierarquias de unidades ou Gestalten, em que cada subunidade é parte da unidade do próximo escopo maior. E, sempre na biologia, essa diferença de relação a que chamo “parte de” é tal que algumas diferenças na parte têm efeito informacional sobre a unidade maior, e vice-versa.
Tendo afirmado essa relação entre parte e todo biológicos, agora posso partir da noção de creatura como mente em geral para a questão de “o que é uma mente”. O que chamo de “minha” mente?
Sugiro que a delimitação de uma mente individual deve sempre depender de quais fenômenos queremos entender ou explicar. É óbvio que há vários caminhos de mensagem fora da pele, e que estes e as mensagens que carregam devem ser incluídos no sistema mental sempre que forem relevantes.
Considerem uma árvore, um homem e um machado. Observamos que o machado viaja pelo ar e cria alguns tipos de cortes em um fulcro pré-existente na lateral da árvore. Se quisermos explicar esse conjunto de fenômenos, devemos nos preocupar com as diferenças na face cortada da árvore, diferenças na retina do homem, diferenças em seu sistema nervoso central, diferenças em suas mensagens neurais eferentes, diferenças no comportamento dos seus músculos, diferenças em como o machado passa pelo ar, até as diferenças que o machado então faz na casca da árvore. Nossa explicação (para alguns fins) vai fazer voltas nesse circuito. Em princípio, se quisermos explicar ou entender algo no comportamento humano, estamos sempre lidando com circuitos totais, circuitos completos. Esse é o pensamento cibernético elementar.
O sistema cibernético elementar com suas mensagens em circuito é, de fato, a unidade mental mais simples; e a transformação de uma diferença que viaja em um circuito é a ideia elementar. A sistemas mais complicados vale mais a pena chamar de sistemas mentais, mais essencialmente é disso que estamos falando. A unidade que mostra a característica de tentativa e erro será legitimamente chamada de sistema mental.
Mas e “eu”? Digamos que eu seja cego, e use uma bengala. Lá vou eu, toc, toc, toc. Por onde começo? Meu sistema mental está ligado à alça da bengala? Está limitado pela minha pele? Começa na metade da bengala? Começa na ponta da bengala? Mas são perguntas sem sentido. A bengala é um caminho pelo qual as transformações de diferenças são transmitidas. O modo de delinear o sistema é desenhar a linha limite de tal maneira que não se corte nenhum desses caminhos, o que deixaria tudo sem explicação. E se estivermos tentando explicar um comportamento específico, como a locomoção de um cego, então, para esse fim, será preciso incluir a rua, a bengala, o cego; a rua, a bengala, e assim por diante, em circuito.
Mas quando o cego senta e come seu almoço, a bengala e suas mensagens não serão mais relevantes – se estivermos tentando entender seu ato de comer.
Além do que eu já disse como definição da mente individual, creio ser necessário incluir as partes relevantes da memória e dos “bancos” de dados. Afinal, pode-se dizer que o circuito cibernético mais simples tem um tipo dinâmico – não basado em armazenamento estático, mas na viagem da informação ao longo do circuito. O comportamento do regente de um motor a vapor no Tempo 2 é parcialmente determinado pelo que ele fez no Tempo 1 – onde o intervalo entre Tempo 1 e Tempo 2 é o tempo necessário para que a informação complete o circuito.
Temos uma imagem, então, da mente como sinônimo de sistema cibernético – a unidade completista relevante total de processamento de informação, por tentativa e erro. E sabemos que na Mente, no sentido mais amplo do termo, haverá uma hierarquia de subsistemas, e qualquer um deles pode ser chamado de mente individual.
Mas essa imagem é precisamente a mesma imagem a que cheguei quando discuti a unidade da evolução. Creio que essa identidade é a generalização mais importante que tenho a oferecer nesta noite.
Considerando unidades de evolução, defendi que precisamos a cada passo incluir os caminhos completos fora do agregado protoplásmico, seja DNA-na-célula, célula-no-corpo ou corpo-no-ambiente. A estrutura hierárquica não é nova. Antes, falamos sobre a reprodução Individual, a linhagem genealógica ou os taxon, etc. Agora, cada etapa da hierarquia deve ser pensado como um 466 sistema, em vez de uma parte cortada e visualizada contra a matriz em redor.
Essa identidade entre a unidade da mente e a unidade da sobrevivência evolutiva é muito importante, não apenas para a teoria, mas para a ética.
Significa, vejam só, que eu agora localizo algo a que chamo “Mente” como imanente no amplo sistema biológico – o ecossistema. Ou, se delimito as bordas do sistema em um nível diferente, a mente será imanente na estrutura evolucionária total. Se essa identidade entre unidades mentais evolucionárias for mais ou menos correta, temos que encarar várias mudanças em nosso modo de pensar.
Primeiro, consideremos a ecologia. Ela tem hoje duas faces: a normalmente chamada bioenergética – a economia da energia e dos materiais em um recife de corais, uma floresta de sequoias ou uma cidade – e, segundo, uma economia da informação, da entropia, da negentropia, etc.
As duas não se encaixam muito bem, precisamente porque as unidades são delimitadas de maneiras diferentes nos dois tipos de ecologia. Na bioenergética, é natural e adequado pensar em unidades delimitadas na membrana celular, ou na pele; em unidades compostas de conjuntos de indivíduos conspecíficos. Tais limites são então as fronteiras em que se pode medir para determinar o quanto mais ou menos energia deve ser dado a cada unidade. Em contraste, a ecologia informacional ou entrópica lida com estimativas de caminhos e de probabilidades. As estimativas resultantes são fracionais (não subtrativas). os limites devem fechar, não cortar, os caminhos relevantes.
Além disso, o próprio sentido de “sobrevivência” torna-se diferente quando deixamos de falar da sobrevivência de algo vinculado pela pele e começamos a pensar na sobrevivência do sistema de ideias em um circuito. O que a pele contém torna-se aleatório na morte, e os caminhos pele adentro também. Mas as ideias, sob ulterior transformação, podem continuar no mundo, em livros ou obras de arte. Sócrates, como indivíduo bioenergético, está morto. Mas muito dele ainda vive, como componente na atual ecologia das ideias.6
Também é claro que a teologia muda e que talvez se renove. Por 5000 anos, as religiões mediterrâneas têm oscilado entre imanência e transcendência. Na Babilônia, os deuses eram transcendentes ao topo das colinas; no Egito, havia o deus imanente no Faraó; o cristianismo é uma combinação complexa dessas duas crenças.
A epistemologia cibernética que ofereço sugere uma nova abordagem. A mente individual é imanente, mas não apenas no corpo. É imanente também nos caminhos e mensagens fora do corpo; e há uma Mente maior, da qual a mente individual é apenas um subsistema. A grande Mente é comparável a Deus, e talvez seja o que as pessoas chamam de “Deus”, mas ainda é imanente ao sistema total interconectado e à ecologia planetária.
A psicologia freudiana expandiu o conceito de mente interna, para incluir todo o sistema de comunicação dentro do corpo – o autonômico, o habitual e a ampla gama de processos inconscientes. O que digo expande a mente para fora. As duas mudanças reduzem o escopo do eu consciente. Uma certa humildade torna-se adequada, temperada pela dignidade ou alegria de ser parte de algo muito maior. Uma parte – se quiserem – de Deus.
Se colocarmos Deus para fora e contra sua criação, e se partirmos da ideia de que somos criados a sua imagem, lógica e naturalmente nos veremos fora e contra as coisas ao nosso redor. E quando nos arrogamos toda a mente a nós mesmo, veremos o mundo ao redor como algo sem mente e, portanto, sem direito a considerações morais ou éticas. O ambiente parecerá algo nosso a ser explorado. A unidade de sobrevivência será eu e os meus, ou conspecíficos contra o ambiente de outras unidades sociais, outras raças, os animais e vegetais.
Se essa é a estimativa da relação com a natureza e tivermos uma tecnologia avançada, a probabilidade de sobrevivência será a de uma bola de neve no inferno. Ou morreremos por efeitos colaterais de nosso próprio ódio, ou, simplesmente, pela superpopulacão e obesidade. A matéria prima do mundo é finita.
Se eu estiver correto, todo o nosso pensamento sobre o que somos e o que as outras pessoas são deve ser reestruturado. Não é algo engraçado, e não sei quanto tempo temos para fazê-lo. Se continuarmos a operar com as premissas que estavam em voga na era pré-cibernética, e que foram especialmente destacadas e fortalecidas durante a Revolução Industrial (o que parece validar a unidade darwiniana de sobrevivência), teremos vinte ou trinta anos antes que o reductio ad absurdum lógico de nossas antigas posições nos destrua.
Ninguém sabe quanto tempo temos, no atual sistema, antes que algum desastre nos atinja, mais sério do que a destruição de qualquer grupo de nações. A tarefa mais importante hoje é, talvez, aprender a pensar de um modo novo. Permitam-me dizer que não sei como pensar desse modo. Intelectualmente, posso chegar aqui e dar uma explicação racional do problema; mas se corto uma árvore, ainda penso que “Gregory Bateson” está cortando a árvore. Eu estou cortando a árvore. Para mim, “eu mesmo” ainda é algo excessivamente concreto, diferente do resto do que estou chamando de “mente”.
A etapar para entender – para tornar habitual – o outro modo de pensar – de modo que se pense naturalmente assim quando pegamos um copo d'água ou cortamos uma árvore – esse passo não é fácil.
E, seriamente, sugiro que não devemos confiar em decisões políticas que emanam de pessoas que ainda não têm esse hábito.
Há experiências e disciplinas que podem ajudar a imaginar como seria ter esse hábito de pensamento correto. Com o LSD, experimentei, como muitos outros, o desaparecimento da divisão entre o eu e a música que estava ouvindo. O percebedor e a coisa percebida tornam-se estranhamente unidos em uma única identidade. Esse estado é com certeza mais correto do que aquele que em parece que “eu ouço a música”. O som, afinal, é Ding an Sich, mas minha percepção dele é parte da mente.
Diziam de Johann Sebastian Bach que, quando alguém perguntava por que ele tocava tão divinamente, respondia “Eu toco as notas, em ordem, conforme estão escritas. Quem faz a música é Deus”. Mas não podem falar da correção epistemológica de Bach – ou a de William Blake, que sabia que a Imaginação Poética era a única realidade. Os poetas sempre souberam dessas coisas, em todas as épocas, mas o resto de nós se perdeu em todo tipo de falsas reificações do “eu” e separações entre “eu” e a “experiência”.
Para mim, outra pista, outro momento em que a natureza da mente ficou clara por alguns momentos, for dada pelos famosos experimentos de Adelbert Ames Jr. São ilusões de ótica na percepção da profundidade. Como cobaias de Ames, descobrimos que os processos mentais pelos quais criamos o mundo em perspectiva tridimensional estão em nossa mente, mas são totalmente inconscientes e estão além de nosso controle. Claro, todos sabemos que é assim – que a mente cria as imagens que depois “vemos”. Mas ainda é um profundo choque epistemológico ter experiência direta do que sempre soubemos.
Por favor, não me entendam mal. Quando digo que os poetas sempre souberam dessas coisas, ou que a maior parte dos nossos processos mentais são inconscientes, não estou defendendo um maior uso da emoção ou um menor uso do intelecto. É claro, se o que digo esta noite for mais ou menos verdade, então nossas ideias sobre a relação entre pensamento e emoção precisam ser revisadas. Se os limites do “ego” estiverem definidos de maneira incorreta ou se forem totalmente fictícios, pode ser bobagem considerar emoções, sonhos ou nossas computações inconscientes de perspectiva como “ego-alien”.
Vivemos em uma época estranha, em que vários psicólogos tentam “humanizar” sua ciência pregando um evangelho antiintelectual. Eles poderiam, sensatamente, tentar fisicalizar a física descartando as ferramentas da matemática.
É a tentativa de separar intelecto e emoção que é monstruosa, e sugiro que é igualmente monstruoso – e perigoso – tentar separar a mente externa da interna. Ou separar a mente do corpo.
Blake notou que “Uma lágrima é uma coisa intelectual”, e Pascal afirmou que “O coração tem suas razões, das quais a razão nada sabe”. Não precisamos nos abalar pelo fato de que as razões do coração (ou do hipotálamo) são acompanhadas por sensações de alegria ou luto. Tais computações se relacionam a problemas vitais aos mamíferos, isto é, questões de relacionamento, no caso a amor, ódio, respeito, dependência, expectação, performance, dominação, etc. São aspectos centrais da vida de qualquer mamífero, e não vejo objeção a chamar tais computações de “pensamento”, embora com certeza as unidades de computação relacional sejam diferentes das unidades que usamos para computar itens isolados.
Mas há pontes entre um tipo e outro de pensamento, e parece que os artistas e poetas se preocupam especificamente com elas. Não é que a arte seja a expressão do inconsciente, mas que se preocupa com a relação entre os níveis de processo mental. De uma obra de arte, podemos analisar alguns pensamentos inconscientes do artista, mas creio que, por exemplo, a análise que Freud faz da Virgem nos Joelhos de Sta. Ana, de Leonardo, engana-se precisamente com relação a esse exercício.
A habilidade artística é a combinação de muitos níveis mentais – consciente, inconsciente e externo – para fazer uma afirmação dessa combinação. Não é uma questão de expressão em um único nível.
De maneira semelhante, quando Isadora Duncan disse “Se eu conseguisse dizê-lo, não precisaria dançar”, falou bobagem, porque sua dança era sobre a combinação de língua e movimento.
Na verdade, se o que estou dizendo está correto, toda a base da estética precisará ser reavaliada. Parece que conectamos sentimentos não apenas às computações do coração, mas também às dos caminhos externos da mente. Quando reconhecemos as operações do creatura no mundo externo, tornamo-nos conscientes da “beleza” ou da “feiúra”. A “prímula à beira-rio” é bela porque estamos cientes de que a combinação de diferenças que constitui sua aparência só poderia ser obtida pelo processamento de informações, isto é, pelo pensamento. Reconhecemos outra mente em em nossa própria mente externa.
E, por último, há a morte. É compreensível que, em uma civilização que separa mente e corpo, devêssemos tentar esquecer a morte ou criar mitologias sobre a sobrevivência da mente transcendente. Mas, se a mente for imanente não apenas nos caminhos da de informação localizados dentro do corpo, mas também em caminhos externos, a morte toma um aspecto diferente. O nexo individual dos caminhos a que chamo “eu” não é mais tão precioso, porque é apenas parte de uma mente mais ampla.
As ideias que parece ser “eu” podem também se tornar imanentes em você. Que possam sobreviver, se verdadeiras.
Comentário à Parte V
No ensaio final desta parte, “Forma, substância e diferença”, muito do que foi dito em partes anteriores do livro toma forma final. Em suma, esta é a soma do que foi dito: que além do (e sempre conforme o) determinismo físico familiar que determina nosso universo, existe um determinismo mental. Ele não é de modo algum sobrenatural. É da própria natureza do mundo macroscópico7 que exiba características mentais. O determinismo mental não é transcendente, mas imanente, e é especialmente complexo e evidente nas seções do universo que estão vivas ou que incluem a vida.
Mas tanto do pensamento ocidental é formado sobre a premissa de uma deidade transcendente que é difícil para muitos repensar as teorias em termos de imanência. Mesmo Darwin, de tempos em tempos, escreveu sobre a Seleção Natural com expressões que quase atribuíam a esse processo as características de transcendência e finalidade.
Pode valer a pena, portanto, fazer um esboço extremo da diferença entre a crença na transcendência e a na imanência.
A mente transcendente ou deidade é imaginada como algo pessoal e onisciente, recebendo informação por canais separados dos terrenos. Ele considera que uma espécie age de maneiras que perturbam a ecologia e, triste ou bravo, envia as guerras, as pragas, a poluição e os detritos.
A mente imanente chegaria ao mesmo resultado final, mas sem tristeza ou raiva. A mente imanente não tem canais separados e supranaturais pelos quais se conhece e se age e, portanto, não pode ter uma emoção separada ou um comentário avaliativo. O imanente será diferente do transcendente no grande determinismo.
São Paulo (Gálatas VI) disse que “Com Deus não se brinca”, e a mente imanente, de maneira semelhante, não se vinga nem perdoa. De nada adianta pensar em desculpas; não se engana a mente imanente.
Mas como nossas mentes – e isso inclui nossas ferramentas e ações – são apenas parte de uma mente maior, suas computações podem ser confundidas por nossas próprias contradições e confusões. Como contém nossa insanidade, a mente imanente está inevitavelmente sujeita à possibilidade de ficar insana. Está em nosso poder, com nossa tecnologia, criar insanidade no sistema mais amplo de que fazemos parte.
Na parte final do livro, considero alguns desses processos mentais patogênicos.
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