A escadaria circular, de Mary Roberts Rineheart. Capítulo 1: UMA CASA NO CAMPO [versão 1]
[NOTA: tradução pensada para imitar a fala de uma narradora não muito letrada, em português brasileiro]
Essa é a história de como uma solteirona ficou louca, abandonou seus bens domésticos na cidade, alugou uma casa mobiliada no interior, durante o verão, e viu que tava envolvida em um desses crimes de mistério que deixam felizes os jornais e as agências de detetives. Por vinte anos eu vivi no conforto; vinte anos com flores na varanda na primavera, carpetes limpos, os toldos postos e a mobília coberta com linho cru; pelos mesmos vinte verões eu tinha dado tchau pros meus amigos e, depois que se foram, tinha me acampado em uma casinha bem pacata na cidade, onde o correio vinha três vezes por semana, e a água não dependia de um tanque no telhado.
Daí — fiquei louca. Quando penso nos meses que passei em Sunnyside, fico pensando se sobrevivi de verdade. Desse jeito, acabo mostrando as cicatrizes da minha experiência. Fiquei grisalha — a Liddy me lembrou disso, ontem mesmo, dizendo que um pouco de corante da água sanitária ia deixar meu cabelo prateado, em vez de um branco meio amarelo. Odeio que me lembrem de coisas desagradáveis e gritei com ela.
— Não — falei de chofre — não vou usar tintura nunca, nem amido.
Diz a Liddy que os nervos dela estão mortos, desde aquele verão maldito, mas ela ainda tem o suficiente, Deus o sabe! E quando ela começa a dar voltas, com a garganta inchada, eu só preciso ameaçar de voltar a Sunnyside e ela fica com uma cara de pavor que parece de alegria; daí eu sempre penso que o verão lá foi um sucesso.
Os jornais distorceram tanto e deixaram tantas lacunas — um deles falou de mim uma vez, e só que eu alugava o lugar quando a coisa aconteceu — que me senti na obrigação de contar o que eu sei. O sr. Jameson, o detetive, disse que nunca ia ter conseguido sem mim, embora tenha me dado pouco crédito, por escrito.
Vou precisar lembrar de coisas de anos — treze, pra ser exata — pra começar minha história. Na época, meu irmão tinha morrido, e me deixou seus dois filhos. Halsey tinha onze, e Gertrude estava com sete. Me jogaram toda a responsabilidade de ser mãe de repente; pra ser uma mãe perfeita, precisa do mesmo número de anos que a criança tem, que nem o homem que começa carregando o terneiro e acaba caminhando com o touro nos ombros. Mas eu fiz o que pude. Depois disso, minha principal responsabilidade era postal: três meses de verão pra recarregar os guarda-roupas, repassar a lista de conhecidos e, em geral, tirar minha maternidade de araque de uma aposentadoria de nove meses.
Senti falta dos verões com eles quando, um pouco mais tarde, no internato e na faculdade, as crianças passaram a maior parte das férias com os amigos. Aos poucos, eu vi que meu nome assinado em um cheque era muito mais bem-vindo do que quando assinado numa carta, embora eu escrevesse pra eles em intervalos regulares. Mas, quando o Halsey tinha terminado o curso de elétrica e a Gertrude tinha saído do internato, e ambos chegaram em casa pra ficar, as coisas mudaram de repente. No inverno em que a Gertrude chegou, eu passei trazendo ela pra casa das festas, levando ela pras modistas no dia seguinte, no meio dos cochilos, e mandando embora uns rapazes com mais dinheiro que cabeça, ou mais cabeça que dinheiro. Também aprendi um monte de coisa: a dizer “lingerie” pra calcinha, “frocks” e “gowns” pra vestidos, e que quem está no segundo da faculdade não é menino, mas homem. Precisei supervisionar menos o Halsey e, como eles puseram as mãos nas fortuna da mãe deles no inverno, minha responsabilidade se tornou toda moral. Halsey comprou um carro, claro, e eu aprendi a prender meu chapéu com um véu cinza de veludo e, depois de um tempo, a não parar pra ver se tinham atropelado um cachorro. As pessoas conseguem ficar desagradáveis quando é com o cachorro delas.
Com esse novo conhecimento eu virei uma tia bem equipada; no começo do ano seguinte já era quase gente. Então, quando o Halsey sugeriu que a gente acampasse nas montanhas Adirondacks e a Gertrude queria ir pra Bar Harbor, ficamos no meio termo e pensamos em uma boa casa de campo com estradas perto, a uma viagem curta da cidade e fácil de chamar o médico por telefone. Foi assim que a gente foi pra Sunnyside.
Saímos pra inspecionar a propriedade, e ela merecia o nome. Tinha um ar feliz que não dava impressão nenhuma de algo fora do comum. Só achei estranho uma coisa: a governanta, que tinha ficado cuidando a casa, se mudou da casa pra cabana do jardineiro, uns dias antes. Como essa cabana era longe da casa, achei que fogo ou ladrões podiam completar o trabalho de destruição sem ninguém incomodar. A propriedade era grande: a casa no topo de uma colina, que descia em largas porções de verde e sebes aparadas, até a estrava, do outro lado do vale, talvez a uns três quilômetros, ficava o Greenwood Cloub House. Gertrude e Halsey se encantaram.
— Mas olha, é tudo que você quer — disse Halsey. — Vista, ar, água limpa e estradas boas. A casa é grande que nem um hospital, se um tivesse uma frente Tipo Rainha Anne e fundos Mary Anne — o que era ridículo: a casa era toda vitoriana.
Claro que ficamos com ela; não era minha ideia de conforto: muito grande e isolada o suficiente pra gente pensar seriamente na questão dos empregados. Mas posso me dar crédito por isso: independente do que aconteceu depois, eu nunca culpei Halsey e Gertrude por me levarem lá. E outra coisa: se a série de catástrofes de lá fez algo, foi me ensinar que, de algum modo, em algum lugar, de talvez uma ancestral meio civilizada usando pele de carneiro atrás de presas ou coletando, eu tinha em mim o instinto da caça. Mas como eu sou solteira e frágil, é provável que meu primeiro contato com o crime seja o meu último. Na verdade, chegou perto de ser meu último contato com qualquer coisa.
A propriedade era do Paul Armstrong, que era presidente do Trader’s Bank; na época que pegamos a casa, ele tava no Oeste com a mulher e a filha, junto com um Dr. Walker, o médico da família. O Halsey conhecia a Louise Armstrong — tinha ficado de olho nela no final do ano passado, mas como ele ficava de olho em todo mundo, não achei que era nada sério, mesmo ela sendo bem charmosa. Eu só sabia do sr. Armstrong porque ele tinha conexão com o banco, onde o dinheiro das crianças tava investido, e por causa de uma história feia com o filho dele, Arnold; dizem que ele forjou a assinatura do pai num outro banco e pegou uma quantia considerável. Mas a história não me interessava.
Levei Halsey e Gertrude pra uma festa numa casa, e me mudei pra Sunnyside no primeiro de maio. As estradas tavam ruins, mas ainda tinha folha nas árvores. Os arbustos tinham um cheiro bom na floresta; no caminho da estação, um quilômetro e meio, o carro ficou preso na lama e eu achei um cômbro cheio de malmequer. Os pássaros — não sei que tipo, pra mim dá tudo na mesma, a menos que tenham uma cor brilhante — tava cantando nas sebes, e tudo tinha um ar de paz. Liddy, que nunca tinha saído da cidade, ficou meio triste quando os grilos começaram a cantar, ou raspar as patas, ou seja lá o que fazem, quando cai o sol.
A primeira noite foi bem tranquila. Sempre agradeci pela paz daquela noite; me mostrou como o campo pode ser, em melhores circunstâncias. Depois dela, nunca mais pus a cabeça no travesseiro sem medo de que ela fosse ser cortada; ou meus ombros, também.
Na manhã seguinte, a Liddy e a sra. Halston, minha empregada, se desentenderam e a sra. Halston foi embora no trem das onze. Depois do almoço, o mordomo, Burke, teve uma dor repentina no fígado, que piorava toda vez que eu chegava perto, e no meio da tarde se foi pra cidade. De noite, a irmã do cozinheiro teve um bebê — ele viu que eu tava indecisa e já disse que na verdade eram gêmeos; em resumo, no dia seguinte, ao meio-dia, a equipe da casa eram eu e a Liddy. Numa casa com vinte e dois quartos e cinco banheiros!
A Liddy queria voltar pra cidade ali mesmo, mas o leiteiro disse que o mordomo negro dos Armstrong, Thomas Johnson, tava trabalhando como garçom no Clube Greenwood e podia voltar. Normalmente eu não gosto de coagir empregados de outras casas, mas poucos de nós se importam com instituições ou corporações — é só ver como a gente malha as ferrovias ou as empresas de bonde sempre que dá — então liguei pro clube e por volta das oito da noite o Thomas veio falar comigo. Pobre Thomas!
Bom, acabou que eu contratei ele ali mesmo, com um salário enorme, e com permissão de dormir na cabana do jardineiro, que tava vazia desde que alugamos. O velho — tinha cabelo branco e mancava um pouco, mas fazia questão de manter a dignidade — deu seus motivos com um pouco de hesitação.
— Não é falar nada não, dona Innes, — disse, com a mão na maçaneta — mas tem acontecido coisa aqui nos último mês que não é natural não. Não é uma coisa nem é outra — uma porta rangendo aqui, uma janela fechando ali, mas quando as janela e as porta batem com um estrondo e não tem ninguém perto, tá na hora do Thomas Johnson aqui dormir em outro lugar.
A Liddy, que tava sempre a no máximo um metro de mim naquela noite, tinha medo da própria sombra naquele lugar tão amplo; ela soltou um gritinho e ficou verde e amarela. Mas eu não me alarmo tão fácil.
Foi em vão; falei pro Thomas que a gente estava sozinha, e que ele ia ter que ficar na casa aquela noite. Ele respondeu com educação, mas firme, que ia chegar cedo na manhã seguinte e, se eu desse uma chave pra ele, ele ia chegar a tempo de fazer um café da manhã. Fiquei na varanda enorme vendo ele andar meio torto no caminho de entrada, com dois corações — irritada com a covardia e grata porque tinha contratado ele. Não tenho vergonha de dizer que dei duas volta na chave da porta de frente quando entrei.
Pode fechar o resto da casa e ir pra cama, Liddy — falei, ríspida. Tá me assustando parada aí. Normalmente, a Liddy fica fula quando falam da idade dela: tá quase com quarenta, o que é um absurdo. A mãe dela cozinhou pro meu avô, e a Liddy deve ter a mesma idade minha. Mas naquela noite ela não ficou fula.
— Não me pede pra trancar não, dona Rachel — ela tremia. Ora, tem umas doze janelas de batente na sala de jogos, e cada uma abre pra uma varanda. E a Mary Ann disse que noite passada tinha um homem parado no estábulo quando ela trancou a porta da cozinha.
— A Mary Ann é uma tonta — falei, muito séria. Se tivesse um homem lá, ela ia ter levado ele pra cozinha e dado comida pra ele com o que restou da janta, em menos de uma hora, de tão habituada. Não seja ridícula. Tranca a casa e vai se deitar. Eu vou ler.
Mas a Liddy apertou os lábios e ficou parada.
— Não vou pra cama — falou. Vou arrumar minhas coisas, e amanhã vou-me embora.
— Não vai fazer nada disso! — falei. É normal eu e a Liddy querer distância uma da outra, mas nunca ao mesmo tempo. Se você tá com medo, eu vou com você, mas pelo amor de Deus não fica se escondendo atrás de mim.
A casa era uma típica residência de verão em grande escala. Sempre que possível, o arquiteto tinha retirado as repartições e usado arcos e colunas no lugar. O efeito era refrescante e espaçoso, mas nada aconchegante. Eu e a Liddy passávamos de uma janela pra outra e nossas vozes ecoavam; era desconfortável. Tinha muita luz — a usina elétrica da vila fornecia energia — mas tinha grandes passagens de chão polido, e espelhos que refletiam a gente de cantos inesperados; comecei a sentir um pouco da bobagem de Liddy passando pra mim.
A casa era muito longa, um retângulo em forma, com a entrada principal no dentro do lado mais longo. A entrada de tijolos se abria pra um hall pequeno e, à direita dele, separada por uma fila de pilares, tinha uma enorme sala de estar. Depois dela ficava a sala de jogos e, por fim, a sala de bilhar. Depois da sala de bilhar, no final da ala direita, tinha um recanto, ou sala de cartas, com um pequeno hall de entrada na varanda leste; dela subia uma escadaria circular estreita. O Halsey apontou pra ela, entusiasmado.
— Olha só, tia Rachel — falou com um floreio. O arquiteto que colocou essa junta sabia das coisas. O Arnold Armstrong podia sentar aqui e jogar cartas toda a noite, depois cambalear pra cama de manhã cedo, sem a família precisar chamar a polícia.
Eu e Liddy fomos até a sala de cartas e ligamos todas as luzes. Experimentei a pequena porta de entrada, que abria pra varanda, e examinei as janelas. Tudo trancado. A Liddy, menos nervosa, tava apontando pra mim a condição miserável do piso de madeira, quando as luzes se apagaram. Esperamos um momento; acho que a Liddy ficou atordoada de medo, se não tinha gritado. Eu peguei ela pelo braço e apontei pra umas das janelas que abria pra sacada. Uma mudança súbita jogou luz sobre a janela, uma luz oblonga e cinza, e mostrou uma figura parada, espiando. Quando vi, ela cruzou a varanda e sumiu de vista na escuridão.